PRIMEIRO “BI”, DEPOIS “HOMO”: UMA PROPOSIÇÃO DE INTERPRETAÇÃO DO BRASIL BASEADA EM FREYRE

Carlos Henrique Lucas Limai

Este texto tem por objetivo delinear uma contribuição e um deslize do texto freyano, qual seja o notável Casa Grande e Senzala, publicado pela primeira em 1933. O adjetivo “notável” talvez já dê uma notícia da opinião do autor deste texto em relação ao conteúdo de tal obra. O que ocorre, no entanto, é a relativização da totalidade dessa qualidade. Explico: tentarei expor, nestas breves linhas, que o argumento central de Freyre possui uma rachadura, exatamente no lugar onde mais precisaria ser quase impenetrávelii: na questão da miscigenação do negro escravo com o branco senhor. Em quanto à contribuição, somente à guisa de satisfação de uma solicitação acadêmicaiii, procurarei mostrar, amarrado à questão anterior, a derivação do pensamento freyano nos campos da literatura comparada, especialmente no que se refere aos estudos feitos por
Lucas Limaiv em disciplinas desta Universidade.
Olhando diretamente ao que pela primeira vez Freyre mostra como uma verdadeira
orgia cultural – senhor e escravo unidos por meio do sexo – o olho se nos salta do rosto
apontando para a figura do escravo negro de origem africana. é para essa figura que meu
cursor aponta, cuidando para chamar a atenção do leitor para uma possibilidade outra de
interpretação social e econômica do Brasil, uma vez que Freyre para ela não haja
atentado, (talvez devido ao hermetismo de seu protestantismo de importação) tenha se
detido na questão da miscigenação e da “muvuca” cultural, predecessora de nossos
carnavais de rua (quem sabe?), assíduas inquilinas de nossas casas-grandes e senzalas
Brasil afora, esquecendo outra importante faceta da cultura brasileira.
Apertando um pouco a lente da luta e aprumando o cursor do teclado, “escravo” é no
que penso, e em escravo negro que mantinha relações sexuais com homens, o que,
posteriormente, viria a ser denominado “homossexual”. Gostaria de me apoiar no
romance O Bom-Crioulo, de Caminha, cruzando o relato aí contido com a interpretação
social de Freyre, o que, penso, será menos produtivo e mais um exercício para pensar a
partir do polo da periferia, tanto intelectualv como literária. O “literário” fica por conta
do desprestígio que Caminha goza (ou não goza, já que quase nem aparecevi, pensando
em binômios, como nos ensina a linguística saussoureana).
Penso que a contribuição maior de Freyre tenha sido o reconhecimento da orgia casagrande
e senzala como ponto de tensão entre as duas classesvii que compunham o país à
época da colônia. O autor protestante nos irá aponta que os filhos bastardos das pretas
escravas puderam, poucos, gozar de algum quinhão na medida em que, com a morte de
seus pais-senhores (ou de sua bondade católico-sincrética), tenham sido abençoados
com alguns tostões, o que, na opinião do autor de Casa-Grande, teria auxiliado a
distribuir, em alguma medida, a renda em solo brasileiro. Na outra margem do
pensamento fica a seguinte cena: o escravo negro que trava relacionamento sexual (e
quiçá amoroso?) com o senhor branco. A obra literária evocada, O Bom-Crioulo, e é
preciso dizer, ambientada em um Brasil pós-colônia e pós-escravidão – apesar de bem
pouco “pós”, já que sua primeira publicação se deu na primeira metade da década de 90
do século XIX, nos presta enquanto objeto de análise; é a possibilidade de interpretação
da sociedade brasileira cruzada pelo envolvimento sexual do branco livre com o negro
escravo ou pós-escravo (o que não é muita diferença em termos de Brasil) que nos
ocupa nestas linhas.
A possibilidade de suplantação do branco pelo negro, em termos sociais é incogitável
quando se pensa no Brasil colônia. Mesmo a miscigenação, que Freyre bem mostra,
apenas caotiza o mapa brasileiro, lembrando os pedidos dos primeiros colonizadores
portugueses no clamor por mulheres brancas e católicas. Mas com a inserção da figura
do escravo negro homossexual, mesmo com o anacronismo da palavra, engendra uma
possibilidade de suplantação. Explico: é na presença do escravo negro que o senhor
branco despe-se de sua condição de europeu-católico-colonizador cedendo lugar ao
brasileiro, primeiro bissexual, e, depois, homossexual do século X X e X XI.viii
Freyre fala do enamoramento dos jovens senhores pelo “budum” das negras; por vezes,
diz o antropólogo, algumas peças de roupas das escravas novas tinham de ser levadas ao
leito nupcial para estimular os sentidos do jovem casado, acostumado às carícias
africanas. O negro homem também deve ter fascinado homens e mulheres brancos
(portugueses); mas o eixo de minha argumentação se estriba é na relação do homem
branco com o homem negro. Até mesmo porque senhoras solteiras autônomas era algo
de difícil existência na sociedade patriarcal brasileira; à exceção das viúvas, me faltam
fontes para ir além. Entretanto sobre os homens não há dúvida de suas extensas
possibilidade de sustentação dos “vícios” da carne com os escravos tão próximos: a um
estender d’olhos para o outro lado da residência senhorial.
A provocação aí está posta. O argumento de Freyre substancia uma visão social do
Brasil transpassada pela figura do negro homossexual, primeiro bi e depois homo, o que
dá conta de uma visão marxista da história, associando sexualidade a fatores sóciohistóricos.

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i
Acadêmico de Letras da UFRGS.
ii
Penso que, uma vez que é na casa-grande e senzala que se desenvolvem tanto o sistema econômico quanto
social do Brasil, seria nesse mesmo lugar onde deveria ter maior preparo na massa que une os tijolos que se apresentam
para interpretar o País.
iii
O presente texto tem por motivação solicitação do Prof. Luis Augusto Fischer, docente dos Programas de
Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
iv
LUCAS LIMA, Carlos Henrique. Uma análise comparativa da personagem homossexual nos romances O
Bom-Crioulo e Onde Andará Dulce Veiga. Ensaio como requisito parcial para obtenção de grau na disciplina de
Literatura Comparada. (Ano de entrega 2008).
v
Provocação pautada em afirmação de Fischer, quando diz que gaúchos não disporiam da “ousadia” necessária
para propor novas interpretações do Brasil.
vi
Foram consultados os manuais de literatura brasileira de Merquior, Coutinho e Candido. Os comentários aí
existentes são por demais lacônicos.
vii
? inapropriada a utilização da terminologia marxiana no contexto da escravidão, posto que escravo não faz a
“roda” do capitalismo rodar. No entanto, quando aí a utilizo, tenho em vista a dupla divisão estamental do Brasil quase
feudal: senhores e escravos, detentores do meio e não-detentores do meio de produção.
viii
Tal interpretação está calcada, mais uma vez, no romance de Caminha, na medida em que Aleixo, a
personagem branca sufocada pelos caprichos do negro Amaro, torna-se bissexual na medida em que termina o romance
naturalista com a velha portuguesa Carola Bunda. Quanto à asserção concernente ao Século X X e X XI, pauto-me em
escritores modernos que mostram a “vitória” da homossexualidade, ou dos prazeres desprovidos de fronteira, sobre a
bissexualidade do século anterior. Penso, essencialmente, em Caio Fernando Abreu. (Ver o livro de novelas Triângulo
das Águas).

~ por chlucaslima em setembro 7, 2010.

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